quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Canção para álbum de moça.

Bom dia: eu dizia a moça
que de longe sorria.
Bom dia: mas da distância
ela nem respondia.
Em vão a fala dos olhos
e dos braços repetia
bom-dia à moça que estava,
de noite como de dia,
bem longe do meu poder
e de meu pobre bom-dia.
Bom-dia sempre: se acaso
a resposta vier fria
ou tarde vier, contudo
esperarei o bom-dia.
E sobre casas compactas,
sobre o vale e a serrania,
irei repetindo manso
a qualquer hora: bom dia.
O tempo é talvez ingrato
e funda a melancolia
para que justifique
o meu absurdo bom-dia.
Nem a moça põe reparo,
não sente, não desconfia
o que há de carinho preso
no cerne desto bom-dia.
Bom dia: repito à tarde,
à meia-noite: bom dia.
E de madrugada vou
pintando a cor do meu dia,
que a moça possa encontrá-lo
azul e rosa: bom dia.
Bom dia: apenas um eco
na mata (mas quem diria)
decifra minha mensagem,
deseja bom o meu dia.
A moça, sorrindo ao longe,
não sente, alegria,
o que há de rude também
no clarão deste bom-dia.
De triste, túrbido, inquieto,
noite que se denúncia
e vai errante, sem fogos,
na mais louca nostalgia.
Ah, se um dia respondesses
ao meu bom-dia: bom dia!
Como a noite se mudara
no mais cristalino dia!
(Carlos Drummond de Andrade)

Opaco.

Noite. Certo
muitos são os astros.
Mas o edifício
barra-me a vista.

Quis interpretá-lo.
Valeu? Hoje
barra-me (há luar) a vista.

Nada escrito no céu,
sei.
Mas queria vê-lo.
O edifício barra-me
a vista.

Zumbido
de besouro. Motor
arfando. O edifício barra-me
a vista.

Assim ao luar é mais humilde.
Por ele é que sei do luar.
Não, não me barra
a vista. A vista se barra
a si mesma.
(Carlos Drummond de Andrade)